Parece que sou todo instinto...

" A LINGUAGEM ADMITE A FORMA DUBITATIVA QUE O MÁRMORE NÃO ADMITE"
"A GRAMÁTICA APARECEU DEPOIS DE ORGANIZADAS AS LÍNGUAS. ACONTECE QUE MEU INCONSCIENTE NÃO SABE DA EXISTÊNCIA DAS GRAMÁTICAS, NEM DE LÍNGUAS ORGANIZADAS. E COMO DOM LIRISMO É CONTRABANDISTA"
Prefácio Interessantíssimo/Mário de Andrade

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domingo, 30 de agosto de 2009

Vanguardas Europeias e o Modernismo Brasileiro


Em meados do século XIX, um novo complexo ideológico-literário se projetava nas vanguardas, movimentos radicais que alteraram os rumos da Literatura e das demais artes no século
XX. As vanguardas provocaram resultados artístico-culturais significativos em um mundo em crise, com espírito de guerra. As principais manifestações vanguardistas são: Futurismo (1909), Expressionismo (1910), Cubismo (1913), Dadaísmo (1916) e Surrealismo (1924). O precursor do Futurismo foi Marinetti (1876-1944), que publicou O futurismo — o primeiro de uma série de manifestos futuristas — em 20 de fevereiro de 1909, no jornal francês Le Figaro. Conforme Massaud Moisés (1994, p. 107),
as características do Futurismo parecem encaminhar-se para o Romantismo, retomado naquilo que a estética do século XIX poderia ter de mais anárquico, de mais revolucionário: o culto da liberdade artística, o culto da intuição, em detrimento da racionalidade. Contudo, paradoxalmente, o Futurismo também se insurge contra
o Romantismo, quando rejeita a noção do Eu, o psicologismo, o sentimentalismo. Em 1912, Marinetti publicou o Manifesto Técnico da Literatura Futurista, propondo, especialmente, a rejeição do passado, do academismo e a destruição das tradições, além de incentivar o verso livre (sem metrificação rígida), a destruição da sintaxe com o uso livre das palavras, com o verbo sempre conjugado no infinitivo, com a abolição do adjetivo, do advérbio e da pontuação, com o emprego de substantivos duplos. Para Lucia Helena (2000, p. 17), no entanto,
Com o significado de “consciência do futuro”, o termo futurismo é anterior a Marinetti, mas é ele quem lhe atribui o sentido que hoje possui: o de ser uma nova forma de arte e ação, uma “lei de higiene mental”, um movimento que pretende ser “antitradicional, renovador, otimista, heróico, dinâmico, e que se ergue sobre as ruínas do passadismo”. [aspas do original]
Segundo Gilberto Mendonça Teles (1987, p. 85-86), a história do futurismo pode ser dividida em três fases:
• a de 1905 a 1909, em que o princípio estético defendido é o verso livre • a de 1909 a 1914, quando se redige a maior parte dos manifestos e se luta pela imaginação sem fios e pelas palavras em liberdade • a de 1919 em diante, quando se fundou o fascismo, e o futurismo se transforma em porta-voz oficial do partido. O Futurismo apega-se ao novo de tal forma, que defende a destruição de museus e cidades antigas. De modo agressivo e extravagante, prega a guerra como "higienização do mundo”. Teles (1987, p. 86) afirma que o Futurismo
foi, em linhas gerais, um movimento estético mais de manifestos que de obras. Assim, mais pelos manifestos do que pelas obras o futurismo exaltou a vida moderna, procurou estabelecer o culto da máquina e da velocidade, pregando ao mesmo tempo a destruição do passado e dos meios tradicionais da expressão literária, no caso, a sintaxe: usando as palavras em liberdade, rompia a cadeia sintática e as relações passavam a se fazer através da analogia.
O Expressionismo é uma tendência estética originária da Alemanha, que defendia a expressão direta das emoções do artista, vindo a influenciar de forma significativa a Música e a Literatura. Segundo Coutinho (1988, p. 242),
O expressionismo consiste num subjetivismo total. […], que supera qualquer consideração referente a ação, personagem ou ambiente. […] o expressionista representa suas próprias visões, sentimentos, emoções, intuições. […] “expressa” o que tem dentro de si. […] O que lhe interessa […] é a interpretação pessoal […] o mundo exterior é desprezado […] Extremo subjetivismo, o Expressionismo é uma forma altamente intelectualizada de arte, tendendo para o abstrato, para o intelectualismo, em que a inteligibilidade nem sempre é característica, dada a dificuldade para o leitor de penetrar no mundo abscôndito do artista, nem sempre acessível à representação verbal.
Segundo Teles (1987, p. 105), o Expressionismo ultrapassou a condição de um simples movimento artístico. Indo além, atingiu foros de revolução cultural, dada a superação, tanto em unidade como em coerência, das ruidosas manifestações futuristas, assinalando inclusive a clara antecipação de alguns aspectos essenciais do Surrealismo, tais como a defesa ao abandono da lógica e a prática do automatismo psíquico.
Em certa medida como reverberação do Futurismo, surge o Dadaísmo, em 1916, teorizado por Tristan Tzara e que, se comparado aos outros movimentos de vanguarda, foi o mais radical. Defendia, sobremaneira, a destruição das formas e valores acadêmicos conservadores. Depois do Futurismo, é o movimento que apresenta maior número de manifestos. “De acordo com Tristan Tzara (...) ‘Dada não significa nada’ e este nada é a sua palavra-chave” (LUCIA HELENA, 2000, p. 32) [aspas e grifos do original]. Acerca do objetivo dadaísta — a destruição — escreve Tzara (apud LUCIA HELENA, 2000, p. 33) em seu Manifesto Dada, de 1918 que, destruindo “as gavetas do cérebro e as da organização social” seria possível “lançar a mão do céu ao inferno, os olhos do inferno ao céu, restabelecer a roda fecunda de um circo universal nos poderes reais e na fantasia de cada indivíduo”. Na leitura de Teles (1987, p. 131-132), o Dadaísmo
foi o mais radical movimento intelectual dos últimos tempos, superando pela intensidade e dimensões estéticas os grandes movimentos de pessimismo e ruptura, como o “Sturm und Drang”, o “mal du siècle” e o decadentismo do final do século
XIX. (…) O futurismo lançou-se contra o passado e sonhou uma superliteratura no século da “velocidade”; o expressionismo via a destruição do mundo, mas sabendo que do caos se organizaria uma estrutura superior, que era a verdadeira beleza. Para os dadaístas, entretanto, não havia passado, nem futuro: o que havia era a guerra, o nada; e a única coisa que restava ao artista era produzir uma antiarte, uma antiliteratura (…). [aspas do original] Essa concepção de destruição dadaísta, na linha de uma oposição total de origens ou sementes, leva à aniquilação das coisas e valores até então aceitos. Dessa forma, a “antiarte” e a “antiliteratura” pensada pelos dadaístas mostram-se, também, como tentativa de confrontar e disseminar a destruição dos moldes acadêmicos vigentes.
Outra corrente vanguardista importante é o Cubismo. De acordo com Lucia Helena (2000, p. 31), os cubistas procuram distanciar-se de seus “estados de espírito, especular desapaixonadamente a respeito dos objetos, adquirir nuanças através do pensamento e não do sentimento”. É marco cubista as Senhoritas de Avignon, de Pablo Picasso, em que se privilegia a tridimensionalidade: é como se um mesmo objeto fosse visto por olhares, ângulos e lugares diferentes. Na Literatura, os princípios do Cubismo aparecem na poesia. A linguagem é desmontada, com planos superpostos e simultâneos, em busca da simplicidade e do que é essencial para a expressão. O resultado corresponde a palavras soltas, escritas na vertical, sem a continuidade tradicional — com sentido múltiplo, sem dúvida, mas construído artificial e arbitrariamente. Sobre as influências e adaptações que o Cubismo processou na poesia, particularmente a francesa, escreve Teles (1987, p. 115)
que Max Jacob, Reverdy, Salmon, Cendrars e outros, em torno de Apollinaire, desenvolveram um sistema poético de subjetivação e desintegração da realidade, criando por volta de 1917, paralelamente ao dadaísmo, uma poesia cujas características são o ilogismo, o humor, o antiintelectualismo, o instantaneísmo, a simultaneidade e uma linguagem predominantemente nominal e mais ou menos caótica.
Como último movimento de vanguarda antecipador/formador/divulgador do Modernismo figura
o Surrealismo1, surgido, oficialmente, em 1924, na França, com a divulgação do panfleto Um cadáver — pela morte de Anatole France, prêmio Nobel de Literatura. O foco dos surrealistas residia em explorar o inconsciente, o maravilhoso, o sonho, a loucura, os estados alucinatórios, ou seja, tudo o que fosse inverso à tradição da lógica e da racionalidade. Assim, o inconsciente torna-se material de destaque, os elementos do sonho são representados tais e quais, sem o trabalho do sonho, nem sua interpretação: arquitetura, ruínas, praças e arcadas desertas, estátuas cegas constituem o cenário onde evoluem manequins, esgrimistas com máscaras, luvas de borracha e pêndulos. É nosso mundo, a perspectiva lá está, mas ele surge como desrealizado pela justaposição e pela desproporção. (COMPAGNON, 1999, p. 75)
No Surrealismo, destacam-se a crítica ao Positivismo e ao Racionalismo; o elogio à colaboração de Freud, vista como imprescindível; a consagração do sonho, do maravilhoso, da liberdade e da “imagem” surrealista. Segundo Lucia Helena (2000, p. 38), o Surrealismo, como movimento de vanguarda, expressa a sua relação com os movimentos vanguardistas que o antecederam, pois tem sido encarado
como caudatário das duas décadas de experimentalismo estético e de agressividade polêmica das vanguardas que o precederam. É verdadeira a sua dívida para com o Futurismo (a paixão pela modernidade) e para com o Dadaísmo (criar uma antiarte e uma antiliteratura). Mas o movimento pretende ir além disso, promovendo uma revolução no campo da linguagem enquanto tal, isto é, na capacidade de continuamente “dar forma a uma consciência sempre superada da realidade, seja ela qual for”. [aspas e grifos do original]
Ao aproximar as principais vanguardas européias que, de uma forma ou outra, foram tidas como respaldo para o movimento Modernista que emergiu, Gilberto Mendonça Teles (1987, p. 29) afirma que
De um modo geral, todos esses movimentos estavam sob o signo da desorganização do universo artístico de sua época. A diferença é que uns, como o futurismo e o dadaísmo, queriam a destruição do passado e a negação total dos valores estéticos presentes; e outros, como o expressionismo e o cubismo, viam na destruição a possibilidade de construção de uma nova ordem superior. No fundo eram, portanto, tendências organizadoras de uma nova estrutura estética e social.
No entre-guerras, a Arte e a Literatura apresentam-se tal qual a sociedade da época: num desconforto geral causado pela insatisfação/repulsa com relação às velhas formas, em crescente decadência. Afrânio Coutinho (1988, p. 244) afirma que, na Literatura Brasileira Modernista, isso se mantém:
vamos encontrar a valorização de diversas categorias que a colocam em antítese às épocas “antigas”. Em vez da universalidade e do absoluto, o que lhe importa é o particular, o local, a circunstância, o pessoal, o objetivo, o relativo, o detalhe, a multiplicidade; em lugar da permanência, é a mudança, a diversidade, a variedade; ao absoluto, prefere o relativo, à Verdade, muitas verdades; às normas absolutas, o relativismo e a diversidade de experiência artística e dos casos individuais; à estabilidade, o movimento; à Natureza, a natureza humana; (...) à descrição e revelação do mundo exterior, o sentimento da existência subjetiva; fugindo à tradição da nobreza, dignidade e decoro, incorporou os assuntos baixos e sujos, a realidade cotidiana, o terra-a-terra, o circunstancial e o particular.
Massaud Moisés (1988, p. 166) contextualiza a pluralidade de avanços que se processam na Europa em princípios do século XX, a partir da Literatura:
1 Faz-se importante notar que, em Portugal, o movimento surrealista veio a ter repercussão apenas a partir de 1947.
O Com efeito a aurora do novo século trouxe modificações profundas, e mesmo radicais, gestadas durante o longo sono do Romantismo e suas metástases simbolistas, parnasianas e realistas. Como se bastasse o dobrar da centúria para irromperem as forças represadas, tem início um balanço do passado imediato, de que resulta um período fervilhante à luz da modernidade: de repente um frêmito de liberdade plena e a arte entra a refletir uma ebulição talvez nunca antes experimentada, cujo processo ainda está em curso. Nos vários campos do saber, nota-se o ingresso numa era nova, e em pouco tempo avoluma-se a sensação de se progredir numa década o equivalente a um século ou mais.
O afã da belle époque se encerra com o início da I Guerra Mundial. Impulsionadas pelo culto à modernidade, surgem as vanguardas européias para defender, de modo geral, a completa ruptura com as tendências clássicas. Baudelaire influenciará o primeiro momento do Modernismo Português que, subseqüente à fase simbolista, vê instaurar-se o segundo momento — o de ruptura —, de que faz parte a Geração de Orpheu e sua Revista. Na esteira da ruptura, o movimento que prenunciava por manifestar-se, no Brasil, e que explode em fevereiro de 1922, com a Semana de Arte Moderna, tendo se estendido, segundo alguns autores, até as décadas de 60/70, recebeu o nome de Modernismo. Este movimento teve suas primeiras manifestações após a I Guerra Mundial, reagindo contra o movimento estético parnasiano decadente, mas ainda difundido à década de 20, pelas academias. Em virtude disso, alguns críticos da História Literária Brasileira localizam as produções do início do século sob o nome de Pré-Modernismo, aí sendo enquadrados autores como Euclides da Cunha, Augusto dos Anjos, Monteiro Lobato e Lima Barreto, que rompem já com o padrão estabelecido, mas ainda não introduzem efetivamente as alterações pelas quais os modernistas se caracterizarão. Embora menos conturbado que em Portugal, este período do início de século no Brasil tem marcas importantes que contribuem para a fixação da ruptura que a década de 20 confirma.
Situando historicamente as manifestações artístico-literárias antecedentes e decorrentes da Semana, após os governos militares do início da República (que ocorre em 1889), os senhores rurais retornam ao poder, fortalecidos pela ascendente política “café com leite”, localizada no eixo São Paulo-Minas Gerais. Tal política estava baseada, obviamente, no poder que se afirma por questões econômicas, de modo que, no cenário nacional, os presidentes eleitos, alternativamente, provinham de ambos os estados hegemônicos: eram ora paulistas, ora mineiros, o que perdurou até 1930, com a entrada do gaúcho Getúlio Vargas no circuito político. Por outro lado, as principais cidades brasileiras, em particular a cidade de São Paulo, conheceram uma rápida transformação, como decorrência do processo industrial, que se intensificou com a I Guerra Mundial, associado a uma crescente urbanização.
Ao mesmo tempo, aumentava o número de imigrantes europeus que se dirigia para as zonas rural, onde havia a produção do café, e urbana, onde estavam as indústrias. Vale referir que o operário urbano de origem européia trazia consigo uma experiência de lutas classistas, aliada à efervescência das discussões acerca do Socialismo e do Anarquismo, que trouxeram na bagagem também, o que veio a se difundir nas indústrias paulistas. Como conseqüência desse engajamento sócio-político, São Paulo assistiu às greves.
É em meio a essa efervescência que o Movimento Modernista Brasileiro, a princípio, por trazer em seu bojo o desejo do vindouro que se anunciava, recebeu o nome de Futurismo — e isso pode ser verificado, por exemplo, no artigo Meu amigo futurista, escrito por Oswald de Andrade, que assim se referia a Mário de Andrade, seu colega de “bagunça”. Entretanto, pela aproximação que o Futurismo de Marinetti estabeleceu com o Fascismo, os brasileiros passaram a repudiar o termo — e Mário de Andrade chegará a afirmar, em seu Prefácio Interessantíssimo, “Não sou futurista (de Marinetti). Disse e repito-o. Tenho pontos de contato com o futurismo. Oswald de Andrade, chamou-me de futurista, errou. (…)” (TELES, 1987, p. 299)
Além disso, se as manifestações brasileiras modernistas fossem denominadas futuristas, não passariam de mais importações, ou “ismos”, da Europa. Em busca do estabelecimento de uma efetiva literatura nacional, voltada para o seu “primitivismo nativo”, como virá a afirmar Antônio de Alcântara Machado, nos registros de Almeida Prado (1993), é que o país passou, nos princípios do século XX, por uma fase sincretista, de transição, de (re)aproveitamentos e de (re)estruturação, não deixando de se apropriar dos movimentos vanguardistas europeus. Tal apropriação caracteriza-se pela incorporação consciente das novidades dos centros culturais europeus, principalmente da França, nos pontos que interessam aos artistas brasileiros, mas não pelo simples fato da importação do novo
e sim pelo viés da absorção e da apropriação, imprimindo ares nativos ao reciclado, tornando tais novidades passíveis de mudanças e adequações às necessidades culturais brasileiras, num espaço de cultura que (re)descobria seus valores. Aí é que a antropofagia cultural de Oswald de Andrade tomará corpo como proposta literária — embora venha a ser teorizada apenas na década de 70, com
o Tropicalismo. Aliados ou influenciados pelas manifestações em busca do novo, que tinham por objetivo abandonar as velhas formas e modelos, houve, no Brasil, antes da Semana de Arte Moderna, importantes acontecimentos que, mesmo isolados, possibilitaram/impulsionaram os jovens artistas/autores a apresentarem as novas tendências na Semana. Em 1912, ao retornar de sua primeira viagem à Europa, Oswald de Andrade traz consigo o conhecimento da primeira das vanguardas, o Futurismo, através do Manifesto Técnico da Literatura Futurista, de Marinetti; entre 1912 e 1915, em São Paulo, o mesmo Oswald procura criar, através da imprensa e de sua ação pessoal, a consciência de renovação modernista; em 1913, igualmente em São Paulo, Lasar Segall realiza sua primeira exposição de pintura expressionista; no ano de 1914, Anita Malfatti expõe suas telas com influência impressionista alemã e, ainda neste mesmo ano, o professor Ernesto Bertarelli escreve, em O Estado de São Paulo, o primeiro artigo acerca do Futurismo: As lições do Futurismo. Em 1915, o poeta brasileiro Ronald de Carvalho junta-se a Luís de Montalvor, Almada Negreiros, Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa, entre outros, na aventura da Revista Orpheu, editada em Portugal. Dois anos depois, em 1917, após retornar dos Estados Unidos, Anita Malfatti realiza sua segunda exposição, novamente em São Paulo, com temática indubitavelmente modernista. Em relação à exposição, Monteiro Lobato faz acirrada crítica no artigo intitulado Paranóia ou Mistificação?. Como se vê, o Modernismo e São Paulo estavam predestinados a apresentar ao Brasil, e ao mundo, na década de 20, o que se produzia em consonância com o diferente, com a ruptura.
Segundo Coutinho (1988, p. 259), “Na fase que antecedeu o Modernismo, duas correntes se defrontam: a dos arcaizantes, presos à magia do passado e fiéis aos cânones consagrados, e dos precursores, que o prenunciaram e o propagaram”. Os primeiros preocupavam-se com a construção,
o vocabulário pomposo, prevalecendo a forma sobre o conteúdo. Contra essa cultura passadista surgem novos artistas para derrubar o ultrapassado. Os então chamados modernistas, na trilha dos que prenunciaram e propagaram o Modernismo, absorviam as informações que chegavam da Europa com as publicações estrangeiras e com quem viesse de lá trazendo idéias e técnicas inovadoras. Explica Lucia Helena (2000, p. 06) que Os movimentos de vanguarda conheceram uma rápida irradiação para além de suas fronteiras de origem. Assim é que, no Brasil dos anos 20, há um clima de efervescência e discussão daqueles procedimentos, aliado ao debate de problemas artísticos e culturais internos. Esta fase, que dá ensejo ao surgimento de nosso Modernismo, é chamada de heróica, pelo seu cunho guerreiro e desbravador, e ocorre por volta dos anos de 1920 a 30, período durante o qual se realiza a conhecida Semana de Arte Moderna de 1922. [grifos do original]
Nesse molde, a Semana não foi o ponto de partida, mas o ápice da renovação que se manifestava desde princípios do século XX, ainda que seja referida como marco do Movimento Modernista Brasileiro. Conforme explicita lucidamente Afrânio Coutinho (1988, p. 261),
Vindo de antes, na Semana de 1922 o movimento adquire coordenação e espírito coletivo. É assim apenas um marco, a Semana. Além disso, desse modo interpretado, o Modernismo não se reduz (...) a “uma ocorrência de apenas sete dias, mas [é] algo que nasceu antes dela e que, se se houvesse limitado a um semana, não teria chegado a 1952”.2 A Semana foi apenas o abscesso de fixação de um movimento, que era antes um estado de espírito geral, e do qual participavam, por “necessidade histórica” (…), numerosos jovens intelectuais e artistas que não estiveram, na Semana, e que vieram a ter papel de relevo no Modernismo. [aspas do original]
Será a partir do que as vanguardas proclamam — ou da ruptura com o antigo, num movimento contínuo de renovação, na busca do novo — que se sedimentará, a partir do Modernismo,
2 Trecho de Cassiano Ricardo, respondendo ao inquérito sobre o trigésimo aniversário da Semana, publicado no Diário Carioca do Rio de Janeiro, datado de 30 de março de 1952.
a tradição da ruptura, que se instaura como tradição moderna, e do que emerge a noção do “voltada contra si mesma”. Em solo brasileiro, as vanguardas européias influenciaram, sobretudo, as artes plásticas, tendo se destacado, dentre todas, a influência francesa. Portugal já não mais interessava ao Brasil, pelo contrário, a repulsa ao luso era o que predominava, ao menos culturalmente, em vista do crescente afã nacionalista. Contudo, Portugal e Brasil apropriaram-se das mesmas fontes estrangeiras. Assim, as duas literaturas nacionais confluem em alguns pontos no início do século passado — prova disso foi a participação de Ronald de Carvalho na fundação da Revista Orpheu, em 1915.
Apesar das diferenças entre as vanguardas, todas compreendiam que os moldes acadêmicos e conservadores de Arte estavam envelhecidos e cristalizados. A característica de renovação proposta pelas vanguardas para se chegar “à essência da arte” far-se-á constante a ponto de se tornar, contraditoriamente, tradição. Tradição, em sua acepção mais usual, é o ato de transmitir modelos, crenças, valores de uma geração à outra. Na medida em que essa “tradição imposta” se mantém — ou esse ato de transmitir inevitavelmente —, desenvolve-se uma relação de dependência com o ponto original de transmissão. A existência de uma “tradição moderna” (leia-se tradição da ruptura) parece, em princípio, absurdo. Considerando, no entanto, o spleen de Baudelaire e a proposta de “novo” defendida por Rimbaud, de multiplicar o progresso, pode-se considerar que a tradição moderna possui tais momentos como precedentes, os quais virão também a antecipar, inclusive, as vanguardas européias. Mas o moderno — tido como avanço, progresso, evolução — não mais será exatamente o mesmo.
Nesse sentido, as discussões de forma, métodos e abordagens sofrem alteração, descolando-se da noção de valor: a modernidade estética se define pela negação — antiburguesa, autônoma e polêmica. Dessa forma, o postulado pela tradição de que o “velho” é melhor que o “novo” esfacela-se e instaura-se a concepção de que o “velho” não significa, exatamente — ou necessariamente —, algo melhor que o “novo”. Na mesma medida, não significa também que o “novo” seja melhor que o “velho”, ou o “velho melhorado”. A tradição da ruptura parte não em busca do “novo” ou do “melhor”, mas do “diferente”.
Compagnon (1999), ao escrever sobre a modernidade, aponta quatro traços que a caracterizam: o não-acabado,o fragmentário,a insignificância ea autonomia.O não-acabado é característica inevitável da modernidade, pois evoca a velocidade do mundo moderno — as obras serão um esboço daquilo que se pretende, contudo, o processo nunca estará terminado, visto ser impossível acompanhar todos os movimentos da modernização. Nesse sentido, o fragmentário é encarado como forma de movimento, uma vez que registra detalhes e impressões rápidas do momento. A associação do não-acabado com o fragmentário provoca a indeterminação/perda do sentido, ou a insignificância, ou seja, a composição harmoniosa proposta pelo antigo cede espaço a imagens pouco convencionais. Como último traço da modernidade — nem por isso menos importante
— está a autonomia, que, vinda da consciência crítica existente no próprio autor, faz com que ele construa suas regras, modelos e critérios para o que considera arte. Assim, nas produções artístico-literárias que nortearam a Geração de Orpheu e a Semana de Arte Moderna repercutem elementos de uma arte que se encaminha para o não-acabado,o fragmentário,a insignificância ea autonomia. Nesse sentido, embora traçando percursos diferentes, evidencia-se que ambos os movimentos tomaram contato com a vanguarda européia, primeiro ponto de difusão da modernidade, e a abrigaram em seu bojo: em Portugal, via cosmopolitismo; no Brasil, via regionalismo.